Misericórdia
 

O conceito de Misericórdia remonta à Antiguidade. Cícero proclamou-a como a mais admirável das virtudes de César, mas Aristófanes já a imortalizara na imagem paradigmática de Antígona, flor de ouro de piedade filial e fraterna que fizera chorar o povo de Atenas, ao assistir à representação da famosa tragédia helénica no ano de 440 A.C.. Encontramos este termo nas civilizações Egípcia, Hebraica, Chinesa e Hindu, mas foi o próprio Cristo que mais o dignificou.Curiosamente, muitos séculos mais tarde, no reinado de D. João I, usavam os cavaleiros um punhal comprido denominado Misericórdia, com que matavam nas batalhas os soldados em sofrimento, daí a famosa expressão, ainda hoje muito utilizada, “dar o golpe de misericórdia”.

Esta palavra antiga encerra um poder simbólico enorme. A Rainha D. Leonor, quando exercia a Misericórdia, tinha uma ideia muito mais abrangente de caridade do que aquela que praticava com os doentes do Hospital das Caldas. De facto, ela não esquecia a caridade intelectual, pelo que protegeu as artes e as letras. Ernesto Hello definiria o amor da Rainha Santa pela caridade intelectual como…“entender que se assassina um homem quando se lhe recusa o seu pão intelectual, tão realmente como se lhe arrancasse o pão para a boca, tão realmente como se lhe vibrasse uma facada”.

Este poder simbólico foi instituído nos finais do século XV, através das chamadas Santas Casas da Misericórdia. “Naquele 15 de Agosto de 1498 um grupo de homens bons, liderados pelo Apóstolo da caridade que foi Miguel Contreiras, na presença da rainha D. Leonor e das mais altas autoridades religiosas e civis, assumiu o Compromisso de se dedicar à prática de todas as obras de Misericórdia quanto fosse possível…” (p.53 Misericórdias Ontem Hoje e Amanhã). A esta data, conhecida como a da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, juntaram-se sucessivamente outras que marcaram o nascimento de Instituições similares por todo o país.

Muitos e prestigiados autores referem a Misericórdia de Alhos Vedros como uma das primeiras a ter sido fundadas, no entanto não tem sido fácil aceder à prova de tal facto. De qualquer forma, embora haja dúvidas sobre a data precisa em que é fundada a Santa Casa da Misericórdia de Alhos Vedros, tomamos como verdade que esta terá sido fundada em 1500, no dia 14 de Outubro.

Moita e Alhos Vedros

Lugar de MOUTA, situado na margem esquerda do lendário rio Tejo, foi em tempos remotos um dos muitos lugares que pertenceu ao antigo concelho de Ribatejo, compreendido entre a região do rio de Coina, e a Ribeira das Enguias, a Oriente.

Não se sabe quem fundou o Lugar de MOUTA, o que se sabe é que já existia logo após a nacionalidade portuguesa.

A etimologia do Lugar deriva da palavra MOUTA que segundo a sua semântica significa uma zona encovada, com altos e baixos, cheia de matagal, de árvores de várias espécies e formada por vegetação rasteira. O nome mudou mais tarde para MOITA DO RIBATEJO e devido ao Concelho de Ribatejo se ter extinguido já há muito (Séc. XV), o nome caiu em desuso, ficando somente o topónimo de MOITA, que ainda hoje se mantém.

O documento mais antigo e atualmente conhecido, que alude ao Lugar de MOUTA, encontra-se referido nos Benefícios e Ofícios da Vila de Alhos Vedros da Apresentação da Ordem, doado na Era de 1274, por D. Sancho II e confirmado por D. Afonso III, Conde de Bolonha em 1293. Consta dos registos do Livro do Tombo de Aldeia Galega, Alcochete e Alhos Vedros, salvaguardados no Arquivo Nacional Torre do Tombo, Ordem de Santiago, Convento de Palmela.

As origens da ocupação humana no Concelho da Moita remontam aos inícios do Neolítico e correspondem a uma ocupação de carácter habitacional com cerca de seis mil anos, como atestam os achados arqueológicos da jazida do Gaio.

Contudo, não se conhece uma continuidade da ocupação do espaço, na medida em que só a partir de meados do século XIII podemos apontar a existência de um núcleo humano em Alhos Vedros, como certifica o mais antigo documento que se conhece referente a esta localidade, que confirma a existência desse lugar com um capelão chamado Fernão Rodrigues, datado de 30 de Janeiro de 1298.

O povoamento da faixa ribeirinha, na qual se integra o território do atual concelho da Moita, só terá ocorrido, de uma forma mais ou menos contínua, com a pacificação de toda esta zona, o que nos faz supor que apenas terá sucedido após a reconquista definitiva de Alcácer do Sal em 1217.

Toda esta extensa região (doada por D. Sancho I, no ano de 1186), que se estendia desde a Margem Sul do Rio Tejo até à extrema do Alentejo, estava na dependência direta da Ordem Militar de Santiago. É neste contexto que surge a designação de Riba Tejo, termo utilizado pelos freires de Santiago para denominarem este vasto território, no qual nasceram e se foram desenvolvendo vários núcleos populacionais, atraídos pela força do estuário.

É no âmbito desta estrutura organizacional que surge a freguesia de São Lourenço de Alhos Vedros, confirmada documentalmente por uma sentença, datada de 5 de Outubro de 1319. O período que medeia os séculos XIV e XVI é propício ao desenvolvimento económico e populacional de Alhos Vedros, de tal forma que vê crescer a sua importância no contexto regional, ao receber o estatuto de vila (1477), o poder municipal (1479) e a carta de foral (1514).

No final da centúria de quatrocentos e início de quinhentos, terá assumido o seu período áureo, abrangendo o seu termo um extenso território que compreendia os atuais concelhos do Barreiro e da Moita, estendendo-se desde a Ribeira de Coina até Sarilhos Pequenos. Embora detivesse uma área de jurisdição, o antigo concelho de Alhos Vedros estava na dependência direta da Ordem Militar de Santiago, a sua donatária, pelo que constituía uma comenda da Mesa Mestral da Ordem.
É neste contexto espácio-temporal que vão surgindo pequenos aglomerados, constituídos por pouco mais do que uma dezena de habitantes, demonstrando que a humanização no território do atual concelho da Moita se fez muito lentamente, o que se deveu, em grande parte, à estrutura do solo, coberto exclusivamente por matas e extensos pinhais.

Dados os imperativos geográficos, os aglomerados que nasceram no termo de Alhos Vedros cresceram em estreita articulação com o trabalho no rio, através de uma rede efetiva de ligações fluviais com a outra margem, o que permitia uma rápida circulação de pessoas e de bens.

O desenvolvimento da Moita está também indissociavelmente ligado ao transporte para a outra margem, por via marítima, através de bateiras (pequenos barcos) que carregavam os produtos resultantes da sua mão-de-obra: sal resultante da exploração salineira; venda de carvão resultado das queimas dos pinheiros e moitas; produtos agrícolas retirados das terras; e os produtos das fábricas de fornos de cal e telha. De regresso traziam da cidade o lixo lá produzido. Mais tarde as bateiras foram substituídas pelas fragatas e pelos varinos (embarcações de maior dimensão).

Quaisquer destes produtos eram também transportados para sul, por via terrestre nomeadamente pela ainda hoje chamada “estrada dos espanhóis”. Esta organização do espaço permitiu mais tarde (já na segunda metade do séc. XIX) e em conjunto com outros fatores, a abertura do caminho-de-ferro e a instalação da indústria corticeira.

À medida que assistimos ao crescimento da Moita, que culmina com a sua elevação a vila em 1681, a importância de Alhos Vedros vai lentamente declinando, situação que se reflete na desintegração do seu território e consequentemente no decréscimo da população. No século XVIII, Alhos Vedros tinha apenas 124 moradores, enquanto a Moita já registava 225 “vizinhos”, e o lugar de Sarilhos Pequenos 55 “vizinhos”.

Nos finais do século XVII, passámos a ter duas vilas e dois concelhos com as respetivas áreas jurisdicionais, administradas individualmente por dois juízes ordinários, vereadores, um procurador do concelho, escrivão da Câmara, juiz dos órfãos com o seu escrivão, dois tabeliães, um alcaide e uma companhia de ordenança.

No século XIX, no decorrer das reformas administrativas empreendidas pelo governo liberal, Alhos Vedros perdeu definitivamente a sua autonomia municipal e foi integrado como freguesia, num primeiro momento, no Barreiro (1855) e, num segundo momento, na Moita (1861). Na última década do século, com a segunda extinção do concelho da Moita (1895), a freguesia de Alhos Vedros voltou a ser anexada, por mais três anos, ao Barreiro, para ser de novo reintegrada, em definitivo, no concelho da Moita (1898).